Geometria em cores

ALCEU LISBOA – A CONSTRUÇÃO DA PINTURA

A arte, o artista, não se constrói com imposições, mas sim com sobreposições. A região da arte é um lugar onde se opera conhecimentos, sejam de cálculos e suas regências racionais, sejam de um saber inefável, um tipo de operação que rege o conhecimento intuitivo, um fazer que se origine de uma ação pautada numa espécie de senso que é difícil mensurar, mas ele está lá, se configura como uma verdade plausível e nos convence coletivamente de sua pertinência. A história da arte e suas imagens emblemáticas enredam esses conhecimentos que fatoram o racional, o reconhecível, o mensurável, mas, sobretudo o estranho, o misterioso, o sublime; para mim o mais sublime na arte é esse reconhecimento de algo que se prefigura à nossa frente e se afirma como arte sem que percebamos exatamente por que: Barthes chama isso de conhecimento obtuso.

A arte, o artista, predicado e sujeito, são fatores de uma equação cujos desdobramentos resultam na instituição de um valor no campo social, este valor é o resultado variável das representações de ambos e demarca o modo de suas estratégias de pensamento, de escolhas simbólicas que trazem ocultas ou expressas os anseios que perfilizam o artista repleto de humanidades, e, quando maturado, repleto de humanismos. Aqui tratamos do processo de como se constrói uma entidade representativa, alguém que tece sua escritura e institui um sentido no seu meio.

Num artista como Alceu Lisboa com mais de uma década de atividade e só agora se apresenta publicamente, se faz necessário descrever sua trajetória silenciosa que resulta nas pinturas aqui presentes. São trabalhos que revelam complexidades que apontam para um olhar serenamente maduro, construídos com o revolver de saberes que se misturam à sua história pessoal de Mestre da Física e amante obsessivo das artes. Homem de cultura acostumado a aprender ensinando, trai certo recato com o que sabe, não para ocultar seus conhecimentos, mas pela utilização socrática de que o saber é um vetor insistente para novas questões. Assim ele sempre tratou sua atividade de artista, onde se exprime pela pintura  com aquilo que sempre fez parte de sua vida, o que equivale dizer que, arte e vida são territórios reflexos.

A pintura é seu objeto, e, para além de uma década de trabalho incansável, o modo como sempre encarou seu aprendizado, suas conclusões e afirmações autônomas, na origem de sua regência obsessiva pelo domínio do que projeta. Sempre se cercou de artistas com carreiras consolidadas tornando-se amigos cuja intimidade de início traçada como critérios que acomodassem suas escolhas com pertinência calculada para o enriquecimento daquilo que sempre perscrutou em seu processo de trabalho, para daí se cristalizarem em relações de amigos afetuosos. Conceitualmente sempre foi seguro do que queria; se lidou com dramas produtivos estes se deram na ordem de como conseguir domar a matéria para subordiná-la à idéia.

A curiosidade expandida servia às experimentações que no início se permitia explorar regiões autorais de colegas pelo puro prazer do domínio técnico. Mas muito cedo seu trabalho adquire seu próprio centro de gravitação, parece enquadrar como tema aquilo que sempre esteve em sua vida: a física. Mas na arte sua lucidez reconhece que os filtros da criação artística lidam com um paradigma diferente. O que é pintura é pintura, a primeira lei da física da arte. Neste sentido insiste no sensorial, na estrutura e na cor: busca o desejo do olho, a beleza pelas vias de matrizes que flertam com a tradição recente da arte brasileira, o Concretismo e Neo- Concretismo são evocações claras, mas se mesclam a certas disposições informais em alguns momentos. Deste modo Alceu Lisboa me lembra Tomie Ohtake, não por proximidade entre obras, antes pela forma como lida com os problemas que desafiam o artista: paciência e tenacidade, repetição para dobrar o erro e atingir a perfeição.

Sempre fui um entusiasta de sua pintura, um dos que clamavam por uma mostra individual, mas sempre se mostrou relutante, “Não é o momento, quando me sentir pronto, farei”. Quando enfim decide por uma mostra nos surpreende pela forma como escolhe sua entronização: podendo expor em qualquer grande galeria comercial decide se submeter a um edital público na Galeria ACBEU. Uma atitude de risco, pois vai competir com outros artistas, e aí me parece revelar uma humildade serena e honesta de alguém que parece dizer a si mesmo que, se deseja a legitimação pública, que seja pelo crivo das disposições institucionais. Assim Alceu elucida sua equação pessoal que envolve a legitimidade do artista e conseqüentemente de sua arte. Nenhum artista é totalmente seguro, ou completamente temeroso, mas num artista lucidamente maduro o jogo da representatividade tem uma importância menos visceral que como o encara um jovem artista. A lucidez remete o maduro a potência da arte.

Na trajetória de Alceu Lisboa percebemos uma evolução que se distingue em sua sintaxe três disposições básicas – a considerar que esta é uma abordagem esquemática. Numa primeira instância, percebemos o artista reconhecendo a superfície da tela e suas possibilidades de desdobramentos. Com recursos quase minimalistas explora no plano resultados que apontam ao tridimensional pelas administrações cromáticas. Um tempo de experimentações beirando ao febril, um positivo deslumbramento com o caráter lúdico que é próprio do ato de pintar.  Com o passar de alguns anos sua linguagem se consolida perante as particularidades que fazem o cruzamento de sua experiência real de vida envolvida com o ensino da física, com o ideal de arte pela qual vislumbra os interesses de uma forma de pintura que traduzam expressivamente aquilo que era observável no discurso científico. O resultado é a expressão puramente pictórica e gráfica que nos envolve pelo seu caráter regrado a rigor e sensorialidade. Retas, curvas, planos de cores, feixes cromáticos que parecem aludir sensivelmente aos fenômenos físicos como ondas de rádio, luz, espaço, sem que se deixe cair numa representação retórica.  Pintura fundamentada na contenção ideal, nos recursos sutilizados da mistura entre a borda rígida e a soltura da mão revolvendo o espaço preciso onde conceitos e afetos cromáticos abrem uma espacialidade sensível e precisa.

Nos trabalhos mais recentes, Alceu se disponibiliza a estruturas quase hieráticas, onde repetidas com diferenças sutis se transmutam pelo seu cromatismo, emancipando os campos de cores com suas texturas brandas e recursos de uma palheta que traduz um pintor ricamente amparado.

É, portanto um artista que expande a natureza de uma arte que é geométrica sem ser recalcada pela matemática que lhe serve como mito temático, arte que atualiza o repertorio de um quadrante da expressão contemporânea referendada em sua origem Malevitchiana, ou do construtivismo brasileiro e internacional, a espraiar suas atualizações no espaço de uma arte construtiva e belamente sensível que Alceu Lisboa nos promove.                    

Vauluizo Bezerra  

Janeiro  2014